Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, aproveitamos para partilhar o testemunho de Catarina Galfarro, que presenciou a luta das mulheres de Alcácer do Sal, numa lavra de arroz, pela jornada de 8 horas, em 1962.

As minhas heroínas: As mondinas contra o trabalho de sol a sol

Era uma manhã linda de sol do princípio de maio de 1962 nas lavras de arroz de Gachinha, entre o canal de regadio e a ribeira de Sítimos, muito próximo do Pocinho de Sal, um rancho de mulheres. Tinham-se levantado pelas cinco da manhã e caminhado cerca de 2 horas até chegar à lavra, a água dos canteiros de arroz ainda estava fria. Eram cerca de 30 mulheres, umas casadas, outras viúvas e algumas adolescentes; com idades dos 12 aos 60 anos.

À medida que iam chegando iam deixando a comida ao fogão, junto à coca.

Homens? Apenas o manageiro.

Ao nascer do sol o manageiro dá a ordem: “Oh, mulheres vamos enregar”.

Uma, a Ilda, deu a voz: “Não, não, hoje só enregamos às 8 horas quando tocar a sirene da Barrosinha. Venha quem vier, não enregamos. Não dizemos nada”.

Nada sabiam de partidos, sindicatos, greves, fascismo.

Mas sabiam que podia haver repressão, GNR, PIDE, despedimentos, patrões zangados.

E sabiam o que custava andar de costas dobradas a mondar ou plantar com os pés na água e na lama, para ganhar 16 a 20 escudos por 10 a 12 horas de trabalho por dia.

O manageiro insistiu: “Mulheres, vamos enregar!”.

O rancho não se moveu, cada uma sem falar, dominando o seu medo e a sua ansiedade.

Era muito clara a opção: ganhar ali mesmo o seu direito a trabalhar 8 horas por dia e a poder voltar para casa ainda com luz. Ter tempo para fazer as tarefas domésticas, cuidar dos filhos, recuperar forças para o dia seguinte.

Tocou a sirene da Barrosinha.

As mulheres tiraram os sapatos e entraram na lavra. Pela primeira vez nas suas vidas só começaram a trabalhar às 8 horas da manhã.

Claro que apareceu a GNR com cavalos, com pistolas e carabinas, o medo estava lá mas elas não mostraram fraqueza nem hesitação: “Não é greve não senhor. Estamos a trabalhar. Só queremos as 8 horas de trabalho como têm os operários da Barrosinha”, disse apenas uma delas.

Largaram para o almoço ao meio dia e uma hora depois, melhor ou pior comidas, voltaram ao trabalho. Às cinco da tarde foram para suas casas ou barracas de caniço ou de madeira, mais ou menos longe da lavra.

Temendo o pior, mas decididas, na manhã seguinte: “Só enregamos às 8 horas”.

E assim sucessivamente, os patrões zangaram-se, ameaçaram, a guarda ameaçou, e elas nada!

Sem discussões nem gritos, apenas uma determinação fria como a água das lavras.

E venceram uma servidão de séculos, a guarda, os patrões … e o medo.

Catarina Galfarro

* Gachinha – Herdade próxima de Alcácer do Sal

** Fogão – Lume de chão onde a comida era cozinhada em panelas de barro

*** Coca – Encarregada de olhar pelas panelas

**** Barrosinha – Uma herdade, com indústria e oficinas, onde os operários eram chamados para iniciar o trabalho por uma sirene que tocava às 8 horas da manhã.

***** Enquanto os trabalhadores da indústria e do comércio tinham conquistado o horário de 8 horas em maio de 1919, os trabalhadores rurais só em 1962 alcançaram esse objetivo.